A cólera de Klaus
Em Meu Melhor Inimigo, o diretor Werner Herzog disseca sua relação turbulenta com o ator Klaus Kinski
Isabela Boscov
A cena é espantosa. O ator alemão Klaus Kinski grita sem parar, insultando o diretor de produção de Fitzcarraldo. "Só porcos podem comer essa comida que vocês servem", vocifera, como se estivesse possuído. Nervoso, o adversário devolve: "Então não a coma. Devore as suas próprias fezes, se quiser". Ao redor, os índios peruanos recrutados como figurantes observam atemorizados a batalha, que já dura horas. Só o cineasta alemão Werner Herzog parece alheio ao tumulto. Inspeciona a locação, conversa com o fotógrafo, coça a cabeça. "Não foi uma crise particularmente ruim, então achei que não devia intervir", explica, para a sua própria câmara, quase vinte anos depois. O que levou o diretor a, em suas próprias palavras, "submeter-se à pena" de fazer cinco filmes com um dos atores mais insanos que já existiram? A resposta, nada simples, está no magistral e assustador documentário Meu Melhor Inimigo (Mein Liebster Feind, Alemanha, 1999), a partir desta sexta-feira em São Paulo, no qual Herzog disseca sua relação com o ator.
Quando viu Kinski pela primeira vez, Herzog estava ainda a muitos anos de se tornar um dos mais expressivos cineastas da Alemanha, criador de filmes fundamentais, como O Enigma de Kaspar Hauser. Tinha 13 anos e morava com a mãe e mais três irmãos num quarto de pensão em Munique. Como a dona da hospedaria tinha um fraco por artistas pobres, recolheu Kinski das ruas. Ele retribuiu a caridade com cenas de terror. Certa feita, trancou-se no banheiro durante 48 horas. "Quando saiu, a banheira, o vaso, a pia, tudo estava moído. Os cacos poderiam ser peneirados com uma raquete de tênis", diz Herzog. "Por isso, eu sabia o que me esperava."
Aos 28 anos, o diretor chamou Kinski para protagonizar Aguirre, a Cólera dos Deuses, um drama sobre a selvageria dos conquistadores espanhóis na Amazônia peruana. O ator acabava de vir de uma peça na qual interpretava um Jesus desvairado e, como de hábito, carregou o personagem consigo. Foi uma provação para a equipe e o elenco. Em determinada ocasião, quando os figurantes atacaram a comida cenográfica, o ator teve um acesso de fúria. Mirou a espada na cabeça de um deles e desferiu um golpe com toda a força de que era capaz. Quem conta a história é a própria vítima, que ainda hoje guarda uma bela cicatriz, apesar do capacete de ferro que compunha seu figurino. E a cena está registrada em filme, como inúmeras outras que Herzog aproveita no documentário. A situação da dupla era tão extrema que suscitou até planos homicidas. Depois de uma briga especialmente feia durante as complicadíssimas filmagens de Fitzcarraldo, Kinski decidiu abandonar a fita. Já fazia as malas quando Herzog se aproximou. "Klaus, você pode partir", disse ele. "Mas, quando chegar àquela curva do rio, eu terei metido oito balas na sua cabeça com o meu rifle. A nona será para mim, mas você leva as oito primeiras." Kinski ficou. "Graças a Deus, Klaus era um covarde", ri o diretor.
Objetivamente, o que levava Herzog a escalar o ator era sua energia feroz e irreprimível. "De alguma forma, nós nos completávamos", diz. Apesar dos episódios assombrosos que narra, Meu Melhor Inimigo deixa de abordar alguns aspectos da vida privada do ator. Não há uma palavra sobre a obscura relação de Kinski com sua filha, a atriz Nastassja, por quem se diz que ele nutria sentimentos pouco paternais. Mas essa ausência é compensada com a honestidade com que Herzog expõe o companheiro e a si próprio. Além disso, ele é um documentarista singular, capaz de dissolver a barreira entre a platéia e os temas que retrata. Uma amostra disso está no perturbador Terra do Silêncio e da Escuridão, no qual o diretor mergulhava no mundo sufocante de pessoas surdas, mudas e cegas. Também na ficção, ele gosta de se deter sobre indivíduos que estão um passo além de seu limite – como o visionário Fitzcarraldo, que queria içar um navio montanha acima, ou o vampiro Nosferatu, que sugava o sangue de suas vítimas para matar não a fome, mas a solidão. Kinski era, evidentemente, o intérprete ideal para tais personagens. Meu Melhor Inimigo termina com uma imagem lírica do ator, um de seus poucos momentos alegres e descontraídos. É um ajuste de contas e uma oferta póstuma de reconciliação. Kinski morreu em 1991, aos 65 anos.
quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
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