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O maior dos épicos
Nenhum filme da era digital épáreo para Lawrence da Arábia,do diretor David Lean
Isabela Boscov
O'Toole, como Lawrence, e Sharif, como Ali: personagem polêmico e cenas monumentais
Há uma cena famosa no drama Crepúsculo dos Deuses em que a protagonista, uma estrela decadente, diz: "Eu ainda sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos". Pois é essa a sensação que se tem ao ver Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, Inglaterra, 1962), que está sendo lançado em DVD no país – a de que o cinema encolheu terrivelmente nas últimas décadas. E não só porque há muito se aposentou o formato 65 milímetros, tão grande que o espectador só percebia as bordas da tela com a visão periférica. Encolheram também a imaginação e a ambição, qualidades em que o diretor inglês David Lean era recordista. Numa época em que nem sequer a palavra "digital" era usada, quanto mais os recursos que ela propicia, Lean filmou durante quase 300 dias na Jordânia e em outras locações para criar as mais fascinantes imagens do deserto já vistas no cinema. Só pela sua imensidão é que se pode medir a estatura do protagonista do filme: o inglês T.E. Lawrence, que na I Guerra conseguiu o feito de reunir sob seu comando árabes de tribos diversas contra o domínio turco na região.
Lean era, à sua moda, tão audacioso quanto Lawrence. Ele abre o filme com a morte do personagem e, a partir dela, reconstitui sua trajetória. Lawrence era um inglês que se sentia mais à vontade em trajes de beduíno, um humanista que comandava batalhas sangrentas e um homossexual que, ao que se sabe, nunca assumiu nem consumou sua opção. Lean, contudo, não tem interesse em desconstruir esse mito. Prefere alimentá-lo, até deixar claro que nem Lawrence sabia muito bem quem era. Essa é uma das razões pelas quais o filme é ainda hoje tão rico. Interpretações fáceis da História tendem a envelhecer.
Camelos pulguentos – Quando Lawrence morreu, em 1935, muitos falaram em filmar suas memórias, Os Sete Pilares da Sabedoria. Vários roteiros chegaram a ser escritos, mas nenhum vingou. Os obstáculos pareciam intransponíveis. Quem se atreveria a deslocar centenas de técnicos, atores e figurantes para paisagens tão hostis? Lean, contudo, agarrou a chance de se apresentar para a tarefa. Embalado pelo sucesso de A Ponte do Rio Kwai, de 1957, ele achou que tinha cacife para propor a idéia. A produção em si foi uma operação de guerra. Nos papéis principais, de Lawrence e de seu amigo árabe Sherif Ali, o diretor colocou os então desconhecidos Peter O'Toole, que vinha do teatro, e Omar Sharif, famoso só em seu Egito natal. Na retaguarda, contudo, tinha verdadeiras fortalezas, como Alec Guinness, Anthony Quinn e José Ferrer. Sua equipe técnica também incluía alguns dos mais talentosos veteranos do cinema. Sem o diretor de fotografia Freddie Young, por exemplo, Lawrence da Arábia poderia ter sido um pesadelo. Os problemas surgiam sem parar. Desde o negativo que borbulhava dentro da câmara, por causa do sol inclemente, até as dunas e planícies que tinham de ser varridas, para que a areia parecesse virgem. As tomadas monumentais exigiam cálculos geométricos complicadíssimos – e é bom notar que, na época, o visor das câmaras não mostrava com exatidão o que estava sendo registrado. A inventividade dos tenentes de Lean, contudo, rendeu cenas antológicas, como aquela em que Sharif surge no horizonte como se fosse uma miragem. Para guiar o olho do espectador até aquele pontinho na tela, pintou-se uma faixa branca na areia, com centenas de metros de extensão, na sua direção. O efeito é imperceptível, mas decisivo.
Os atores, por sua vez, tinham outras dores de cabeça. O'Toole, Sharif e Quinn passaram meses cavalgando camelos – sempre sob um calor que atingia os 50 graus e montados em animais cobertos de pulgas. Sharif conta que, todos os dias, quando tirava sua túnica preta, ela estava branca por dentro, tanto era o sal que perdia com a transpiração. Lean era um diretor implacável. Mesmo que os intérpretes estivessem sendo mostrados a quilômetros de distância, ele não permitia que fossem substituídos por dublês, como é comum hoje. Na célebre seqüência do ataque à cidade de Ácaba, a excitação que se vê nos olhos deles é mais do que verídica: atrás dos atores vinha uma tropa de beduínos em disparada, todos empunhando sabres, e qualquer acidente seria fatal.
Versão restaurada – Situações como essa, é verdade, não são incomuns em produções de tal calibre. Lawrence da Arábia é considerado o maior épico do cinema não só porque é monumental, mas principalmente porque Lean soube imprimir a ele uma escala humana. Seu bom gosto o impelia sempre à discrição – no uso esparso dos elementos de cena, na música sugestiva de Maurice Jarre ou nos diálogos enxutos do roteirista Robert Bolt. Por isso seus 215 minutos passam tão rápido. Vale lembrar que essa é a duração da versão restaurada em 1989 – a que está contida no DVD e acompanhada de vários extras saborosos. Para aumentar o número de sessões nos cinemas, o filme sofreu sucessivos cortes à época de seu lançamento. Vê-lo ou revê-lo na íntegra é uma experiência imbatível. Até porque nunca se fará nada igual. Numa entrevista no DVD, o diretor Steven Spielberg pondera que hoje Lawrence da Arábia não sairia por menos de 285 milhões de dólares – e aí a tentação de usar efeitos digitais, mais baratos do que uma filmagem "na raça", mas menos convincentes, seria irresistível. Ainda que houvesse tanto dinheiro, contudo, faltaria o essencial: David Lean, que morreu em 1991, pouco mais de um ano depois de ver seu filme montado da maneira que concebera.
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