quinta-feira, 15 de novembro de 2007

"a montanha vista do observatório"

e por falar nisso, não deixem de ver também "rede de intrigas". peter finch assustador.
chico., já viu muito e ainda há muito por ver.




7/7


MÍDIA E CINEMANotícias e abutres
Alexandre Gomes
Todo fazedor de jornais deve tributo ao Maligno. [La Fontaine]
Clássico do cinema americano, A montanha dos sete abutres (Ace in the hole), quase vale por um curso de Jornalismo, por apresentar reflexões tão atuais que mal se pode acreditar que tenha sido feito no início da década de 50 (1951). Assistir a este filme – como ler Ilusões perdidas, de Balzac – é essencial a quem se aventura no terreno a cada dia mais pantanoso do jornalismo.
A história do filme é relativamente simples. Um jornalista desempregado nos grandes centros por conduta questionável busca refúgio em pequeno jornal da província, em Albuquerque, no estado do Novo México. Após longo e tedioso ano ele finalmente encontra uma matéria que pode levá-lo de volta ao grande circuito: um homem preso em velhas ruínas indígenas, justamente na Montanha dos Sete Abutres que dá o título do filme em português – até mais adequado que o título original.
O drama humano, as circunstâncias reais ou inventadas pelo repórter para a trama e a abordagem sensacionalista logo chamam a atenção do público. Aos poucos o repórter envolve tudo no enredo da sua história, manipula o xerife para ter acesso exclusivo às ruínas, controla a mulher da vítima para que ela a contragosto desempenhe um papel teatral como semiviúva. Por fim, ele obriga o empreiteiro responsável pelo salvamento a adotar um método de resgate que demoraria uma semana, em vez de outro que libertaria a vítima em menos de 24 horas, pois precisa prolongar o espetáculo ao máximo. Quando estão próximos de serem salvos – o soterrado da caverna e o repórter do ostracismo provinciano – a vítima morre de pneumonia e acaba por provocar um surto de remorso no jornalismo.
Mas não só o enredo principal permite uma reflexão profunda sobre o jornalismo: a todo momento o protagonista dita suas máximas e conselhos sobre o ele considera notícia. Apesar de quase caricaturais, já que ele enuncia coisas que nem sempre são ditas, as reflexões dele revelam toda a ideologia da "penny press" americana. "Eu posso cuidar de grandes notícias e pequenas notícias, e se não houver notícias eu saio e mordo um cachorro" ("I can handle big news and little news. And if there’s no news, I’ll go out and bite a dog"), diz Charles Tatum ao pedir emprego no jornal de Albuquerque, brincando com a clássica definição do que é notícia.
Num dos trechos mais elucidativos da ideologia da "penny press" – quando Tatum discute durante uma viagem com o novato Herbie Cook o que é jornalismo e o que é notícia – o protagonista diz que os anos de faculdade de Cook foram inúteis, muito mais útil teria sido a experiência de Tatum como vendedor de jornais pelas esquinas de Nova Iorque. Desta experiência ele aprendeu o que é notícia – entendida como sendo aquilo que interessa ao público, que vende jornal.
A morte de centenas ou milhares de pessoas, prega Tatum, não tem o mesmo interesse que a morte de uma única pessoa. Neste evangelho do penny press a morte de milhares é apenas um número, enquanto a morte de uma única pessoa tem "interesse humano", faz com que as pessoas "tenham interesse em saber tudo sobre ele".
A necessidade da notícia de impacto – que vende – independe da verdade, tanto que o quadro com a frase "Diga a verdade" na redação do jornal de Albuquerque é constantemente ironizada por Tatum e, pressionado por temores de consciência, é com ela que ele tenta se reconciliar no final do filme. A "construção da notícia" também é enfocada por Tatum durante a viagem já mencionada. Ele e Herbie vão cobrir um festival de "caça a cascavel" e Tatum menospreza o evento, a despeito das centenas de serpentes. "Não preciso de centenas de cascavéis, dêem-me apenas umas 50 no Centro de Albuquerque", diz ele. O pânico causado pelas cascavéis caçadas pelas ruas da cidade seria amplificado quando uma única cobra ainda restasse, e este último réptil estaria guardado na gaveta de Tatum, escondida para que a história prosseguisse.
Quase não há inocentes na história brilhantemente dirigida por Billy Wilder, a despeito de ela ter sido um grande fracasso comercial. Tatum é quase tão vítima como o acidentado Leo Minosa. O público que acorre em massa ao local do acidente (que gerou um segundo título pelo qual o filme é conhecido, The big carnival), que acompanha com grande interesse por jornais e rádios a epopéia, é que fornece o leit-motiv da abordagem sensacionalista.
A mulher de Minosa, ansiosa por dinheiro e por sair ela também do buraco, o xerife ambicioso, que se submete à conspiração de Tatum para garantir sua reeleição, são apenas os atores mais evidentes de um enredo de oportunismo do qual só escapa a patética, quixotesca figura do pai de Leo, emblematicamente a única a ficar defronte das ruínas após Tatum anunciar a morte de Leo.
Se os jornalistas que acorrem em massa ao evento – como no caso real do soterramento de Floyd Collins em 1925, que inspirou o filme e inaugurou a "história de fundo humano" como produto da imprensa – protestam contra Tatum não é pela manipulação da notícia e da emoção dos leitores, mas sim porque ele conseguiu o monopólio do acesso a Leo com suas maquinações. Mesmo o aparentemente inocente Herbie demonstra-se encantado com as teorias de Tatum e ansioso por segui-lo na fama, deixando de lado seus princípios.
O fracasso do filme é facilmente explicável, afinal dificilmente ele seria bem visto pela imprensa que se veria retratada nele – e com isto compartilha o destino de seu contemporâneo Cidadão Kane. Retrata também o gosto da massa, dos consumidores de notícias ansiosos por uma desgraça que lhes traga alguma emoção à vida, e por isto certamente também não agradou.
O filme tem um final dramático, no qual transparece um fundo moral que quase empobrece a trama com uma alegoria melada. Mas é sobretudo um final otimista porque demonstra alguma esperança de uma renovação ética do jornalismo. Em resenha clássica, William Shriver disse que o filme é para o jornalismo impresso o que outro clássico, Rede de intrigas (Network), é para a TV, ainda que a comparação brilhante seja talvez imprecisa.
Rede de intrigas – outro filme essencial aos jornalistas – é apenas uma atualização do filme de Wilder para a década de 70. A grande diferença é que Network não comporta a mesma esperança no final, porque já demonstra a informação em adiantado estado de mercantilização, não mais fazendo sentido senão como produto de uma indústria cultural, feita não mais para informar, mas apenas para ser consumida.
Se em 1951 Tatum era um caso extremo, hoje ele seria a regra absoluta de um jornalismo que não é só industrial por adotar modernos processos de produção e disciplina fabril, mas também porque não produz informação, e sim mercadoria. Hoje já não haveria espaço para Mr. Boot – o editor do jornal de Albuquerque que orgulhosamente exibe o quadro "Tell the truth" e tenta conter os excessos de Tatum –, porque sua visão de que a informação é um meio para as pessoas viverem melhor e não um fim em si mesmo já não tem mais vez no jornalismo industrial moderno.

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